José Truda Palazzo Jr. é Vice-Comissário do Brasil junto à Comissão Internacional da Baleia (CIB). Administra também o Projeto Baleia Franca, que busca a proteção dessa espécie ainda altamente ameaçada no Brasil e em outros países da América do Sul. É Presidente da Coalizão Internacional da Vida Silvestre – IWC/BRASIL, Presidente do Conselho do Instituto Baleia Jubarte, membro do Conselho Diretor da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação e membro do “Board of Trustees” da International Wildlife Coalition/USA, além de integrar o Grupo de Trabalho Especial de Mamíferos Aquáticos do IBAMA.
Propôs e trabalhou ativamente pela decretação de áreas naturais protegidas como o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha (e também em sua declaração como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO), a Reserva Ecológica Ilha dos Lobos (RS), e as APAs do Anhatomirim e da Baleia Franca (SC). Tem oito livros publicados sobre conservação da Natureza, e outros sete em gestação. E-mail: palazzo@terra.com.br
1 – Qual é a atual situação das baleias no Brasil e no mundo?
Melhor do que há vinte anos, mas ainda em risco. A moratória mundial da caça comercial de baleias, adotada em 1982 e implementada a partir de 1986, deu um fôlego às grandes baleias cujas espécies se viam quase todas ameaçadas pela ganância dos baleeiros. Espécies como a baleia franca e a baleia jubarte, ambas com importantes áreas de reprodução em águas brasileiras, estão aumentando suas populações lenta e gradativamente. Mas a violação da moratória, que hoje ocorre por parte do Japão, Noruega e Islândia, sob diferentes subterfúgios legais, ameaça trazer de volta a matança em larga escala.
2 – Quais são as maiores conquistas na luta pela preservação das baleias? E os principais desafios para atingir este objetivo?
A maior conquista, sem dúvida, é a mudança global de mentalidade em relação às baleias ocorrida a partir do final da década de 1970, quando as pessoas (e os governos que as representam) passaram a ver nesses animais extraordinários muito mais do que carne e gordura para o comércio. Com exceção de Japão, Noruega e Islândia, paradoxalmente países dentre os mais ricos do mundo mas com mentalidade das mais atrasadas em relação à conservação marinha, os demais povos passaram a considerar as baleias parte de seu patrimônio ecológico, cultural e econômico também, mas através de usos não-letais, como o turismo de observação, que atualmente gera mais de US$ 1 bilhão em 87 países e territórios onde é praticado. Foi essa mudança radical de mentalidade que possibilitou acabarmos com a caça à baleia em sua quase totalidade, à exceção da matança ainda praticada abusivamente pelos três países mencionados, mas em escala muitíssimo menor do que há vinte anos. Para chegar a essa mudança radical, foi preciso que as organizações ambientalistas não-governamentais criassem um movimento de escala mundial sem precedentes, enfrentando o lobby dos baleeiros e convencendo os governos, através da pressão política direta, que defender o fim das baleias pela caça era uma opção que desagradava os eleitores. Tanto que na atualidade o bloco pró-caça no panorama mundial é composto somente pelos três baleeiros que citei, mais dois países de governo de características ditatoriais explícitas ou veladas (China e Rússia) e pequenos países pobres que o Japão vem literalmente comprando, à custa de “auxílios” e “subvenções”, para votar no seu bloco e tentar reverter a moratória da caça vigente. Mas minha impressão é que não vão conseguir, mesmo lançando mão desses artifícios pouco legítimos. Precisamos é ficar alertas e não deixar que os baleeiros avancem politicamente no plano internacional.
3 – Como surgiu o Projeto Baleia Franca? Como atua?
O Projeto Baleia Franca surgiu de uma iniciativa do incansável Vice-Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, que conheci quando ele ainda era Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em 1979, e uma das duas únicas pessoas no governo militar de então que era ativamente contrário à continuação da caça à baleia no Brasil (o outro era o Professor Paulo Nogueira-Neto, então à frente da Secretaria Especial do Meio Ambiente). O Almirante Ibsen deixou em seguida a ativa e foi presidir a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, de onde me convocou em 1981 para procurar em Santa Catarina uma “baleia preta com filhote” que, segundo os pescadores, andava aparecendo na costa catarinense e ele suspeitava que se tratasse da baleia franca, espécie muitíssimo ameaçada. Com a “astronômica” verba de mil dólares/ano para dois anos de trabalho, lá me fui correr a costa catarinense com uns amigos, entrevistando pescadores e procurando os bichos misteriosos, até que em agosto de 1982 localizamos a primeira fêmea com filhote, redescobrindo assim a população reprodutiva da espécie no Brasil. A partir daí, passamos a atuar em duas frentes paralelas: a pesquisa e monitoramento científico dessa população remanescente, para conhecer sua dinâmica, movimentos e comportamento no período reprodutivo, e uma atuação muito intensa junto às comunidades costeiras para proteger esses animais e seus filhotes, que podem chegar até a uns 30 metros das praias entre junho e novembro, ficando muito vulneráveis a perturbações. Mais recentemente, temos incentivado o turismo de observação de baleias na costa centro-sul de Santa Catarina como forma de promover emprego e renda a partir da presença das baleias, tendo o cuidado de desenvolver um programa de monitoramento das atividades de turismo e do comportamento dos animais visando detectar – e corrigir, se necessário – qualquer eventual impacto das mesmas, que até o presente, felizmente, vêm se desenvolvendo sem prejudicar a recuperação da espécie. Os resultados do trabalho do Projeto e a nossa continuada militância no plano internacional são integrados à política brasileira de conservação das baleias francas e outros cetáceos através de um Acordo de Cooperação com o Centro Nacional de Pesquisa, Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos – CMA/IBAMA, nosso principal parceiro institucional na esfera governamental. Durante vários anos o Projeto sofreu com a falta de recursos para dar andamento a suas atividades, sobrevivendo de doações de fundações internacionais e da caridade de amigos e pequenos empresários do litoral catarinense, até que há três anos a PETROBRAS tornou-se nossa patrocinadora oficial, permitindo ao Projeto dar um salto de qualidade nas suas atividades e expandi-las, acompanhando o crescimento e a ampliação da distribuição das baleias francas ao longo da costa brasileira.
4 – Como você avalia a atuação do governo, nas esferas federal, estadual e municipal, na defesa dos cetáceos? E das ONGs e setor empresarial?
É muito gratificante reconhecer que as alterações político-partidárias nos sucessivos governos federais não criaram descontinuidade na política brasileira para a conservação dos cetáceos, sendo hoje, possivelmente, um dos programas ambientais brasileiros que mais recebe reconhecimento internacional, principalmente em função da parceria efetiva entre o IBAMA, o Ministério das Relações Exteriores e os dois projetos brasileiros de conservação de cetáceos, o Baleia Franca e o Baleia Jubarte. Aliás, muita ONG gringa vem aqui fazer propaganda e vender camisetinha e badulaques com fotinhos de baleia, mas aqui no Brasil nada fazem pela sua conservação. Os movimentos e as atividades de campo essenciais à proteção adequada das espécies são fruto do trabalho de entidades e pessoas daqui mesmo, com muito trabalho e suor. Os governos estaduais tentam se apropriar do discurso e da propaganda das baleias mas infelizmente não conseguem desenvolver uma política adequada para, além de promover o turismo de observação, efetivamente fazer algo de bom pelas baleias e pela conservação do ambiente marinho. Já no nível municipal posso dizer que estamos muito contentes com o fato do nosso município-sede, Imbituba, em Santa Catarina, ter adotado o título de Capital Nacional da Baleia Franca. Lá, vários atores sociais, além da Prefeitura, nos ajudam em nosso trabalho. Podiam fazer mais? Com certeza, mas acredito que estamos caminhando para uma maior consciência dos municípios onde as baleias ocorrem, sobre a necessidade de valorizá-las como patrimônio natural. Já o setor empresarial… tirante os microempresários que nos apóiam em SC e a PETROBRAS, que é a maior patrocinadora de projetos de conservação marinha da América Latina, é preciso dizer que o empresariado brasileiro é via de regra, e com honrosas exceções, unha-de-fome e descompromissado com a conservação. Esse papo de “responsabilidade social” para a maioria é fachada pura. Mas estamos no momento sondando alguns segmentos do meio industrial que se declararam interessados em patrocinar nossas atividades, e quem sabe alguém dessa pequena minoria realmente consciente decide nos ajudar a fazer ainda mais.
5 – Qual a importância da criação do Santuário de Baleias Atlântico Sul, proposta pelo Brasil na Comissão Internacional da Baleia (CIB)? E o que representa para o Brasil?
O Santuário proposto pelo Brasil, que complementaria desde a linha do Equador o já existente Santuário Antártico, teria a função principal de assegurar que os usos das espécies e populações de baleias que aqui ocorrem fossem reservados às atividades não-letais, ou seja, pesquisa científica (não aquela farsa que Japão e Islândia fazem, matando baleias pra uma “pesquisa” que só serve pra manter carne de baleia nos seus mercados), turismo de observação e valorização educativa e cultural desses animais. À medida em que aumentam na CIB as pressões pela aprovação de alguma forma de retorno da caça comercial de baleias, é fundamental assegurar que os direitos dos países da região aos usos não-letais seja protegido contra a intrusão, outra vez, dos interesses baleeiros de países ricos. Ainda que seja bastante difícil aprovar o Santuário na CIB – ele vem sistematicamente recebendo maioria simples de votos, mas é necessário atingir 3/4, o que é bloqueado pelos votos do bloco pró-baleeiro – o Brasil, ao propô-lo e defendê-lo sistemática e vigorosamente, reafirma sua liderança na proteção dos cetáceos e cria um panorama político e diplomático desfavorável às pretensões baleeiras, sobretudo japonesas, no Atlântico Sul. Por isso é que não devemos desistir de manter o tema em pauta e de forçar uma negociação que, se algum dia a caça comercial voltar a ser aprovada, mantenha nossa região integralmente protegida contra essa prática inerentemente predatória.
6 – Os pescadores japoneses, tradicionais defensores da pesca predatória das baleias, argumentam que a carne de cetáceo faz parte da dieta do país e que a presença excessiva de baleias-minke representa uma ameaça ecológica, pois reduz as povoações dos peixes que lhes servem de alimento. Como o sr. analisa este posicionamento do Japão?
Trata-se de uma das mais escandalosas idiotices já ditas sobre a vida nos oceanos, mas serve bem tanto aos baleeiros como aos industriais da pesca predatória, esses sim responsáveis pelo verdadeiro estupro dos oceanos com suas práticas ganaciosas e insustentáveis, logo é uma mentira flagrante que mesmo assim vem sendo propagada pelo lobby pesqueiro afora. Sem entrar no fato de que a afirmação é uma simplificação burra das teias complexas de relações tróficas dos oceanos, ora, há 200 anos havia muitíssimo mais baleias e também muitíssimo mais peixes… logo… alguma coisa a mais do que as baleias andou ocorrendo. Esse “alguma coisa” chama-se pesca industrial, um câncer que lamentavelmente corrói o planeta quase sem oposição, já que essa rapina criminosa ocorre longe de câmeras e das vistas da maioria das pessoas. Agora, culpar as baleias pelo fim dos estoques pesqueiros é de uma cretinice e hipocrisia indizíveis.
7 – O turismo de observação de baleias gera impactos ou é um aliado na conservação das espécies?
Sem qualquer sombra de dúvida, o turismo de observação é um dos mais importantes aliados na luta pela proteção definitiva e integral das baleias, já que gera emprego e renda nas próprias comunidades que vivem perto das áreas de concentração desses animais. Além disso, enquanto a caça à baleia é uma atividade não só depredadora do recurso mas também altamente concentradora de renda, e que historicamente só beneficiou países ricos, o turismo tem uma repartição de benefícios econômicos muito mais ampla nos estratos sociais das comunidades costeiras. Claro está que essa atividade também precisa ser regulada e monitorada para evitar que hajam impactos negativos. Tanto o Projeto Baleia Franca como o Baleia Jubarte desenvolvem estudos de longo prazo para esse monitoramento (aliás pioneiros no quadro mundial, em se tratando de grandes cetáceos), e a legislação brasileira é bastante precautória, permitindo o turismo de observação embarcado apenas mediante condições rígidas – motores desligados ou em neutro a 100 metros dos animais, por exemplo, deixando que as baleias decidam se querem se aproximar ou não. Nenhum resultado científico demonstra impactos da atividade de “whalewatching” a nível populacional nas grandes baleias. Tanto as francas como as jubartes, espécies que costumam ser submetidas à pressão turística, continuam se recuperando a olhos vistos. E a atividade é também um importantíssimo vetor de educação e conscientização sobre a conservação marinha, já que ver uma baleia de perto é uma experiência simplesmente inesquecível.
8 – Segundo biólogos, não há o que se fazer num caso de encalhe de um animal que pesa toneladas. Em contrapartida, o Ministério do Meio Ambiente propôs a criação de um plano emergencial para lidar com esse tipo de situação. Como o sr. se posiciona sobre essa questão?
Não estou familiarizado com a proposta do MMA que mencionas, mas há algumascoisas a considerar nesse assunto, que vem sendo tratado com desmesuradahisteria pelos meios de comunicação e mesmo por algumas autoridadespolíticas sem conhecimento técnico. Baleias adultas que encalham, em 99% dos casos, vão morrer mesmo; ou estão doentes, ou com algum problema grave que causou o encalhe. Logo, apesar de ser preciso fazer todo o possível para salvar esses animais com os meios disponíveis, eu sou contra se desviar os exíguos recursos que existem no país para a conservação das populações de baleias em programas estratégicos de longo prazo, para atender à demanda pontual de se tentar salvar indivíduos isolados, cuja chance de sobrevivência é mínima. Por outro lado, encalhes de mamíferos aquáticos oferecem oportunidades de se ganhar algo com um evento triste: o conhecimento científico, que pode ajudar em muito na conservação das espécies. Visando ordenar os esforços de, por um lado, se tentar salvar da melhor maneira possível os animais encalhados vivos, e por outro maximizar o aproveitamento científico dos animais mortos, é que o Centro Mamíferos Aquáticos do IBAMA está coordenando a criação das Redes de Encalhes de Mamíferos Aquáticos na costa brasileira, que congregam instituições de pesquisa e conservação e já estão atuando de forma cooperativa no Nordeste e no Sul. A Rede do Sudeste, onde os encalhes dão a maior repercussão de imprensa, só não saiu ainda por conta do feudalismo burro de alguns “cientistas” que se acham “donos” de áreas da costa onde trabalham e têm medo de uma possível “concorrência”… mas a maioria lá é de gente séria e no final acredito que o bom senso vai prevalecer. Pesquisador que não se importa com conservação não vale o que a sociedade investe nele.
Entrevista: Ambiente Brasil – http://www.ambientebrasil.com.br
Data: 29 de novembro de 2004